Constelação familiar no Judiciário reforça preconceitos e contamina mediações
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Para os advogados e especialistas entrevistados pela revista eletrônica Consultor Jurídico, não só há uma série de problemas de ordem social a partir do uso da Constelação no Direito Familiar, como a prática também contamina o instituto da mediação, de suma importância para a celeridade processual. A “teoria” ainda coloca a figura da mulher como inferior ao homem (lei da hierarquia), o que reforça sua vulnerabilidade como parte nos processos de Família e viola princípios básicos do Direito, como o da isonomia.
“A teoria também tem passagens que naturalizam a violência sexual sofrida pelas meninas dentro da família, e também naturaliza a responsabilização da mulher e a isenção dos homens em caso de violência sexual. Isso é o que diz a nota do CFP, que foi subscrita pelos maiores profissionais da área. E a gente vê isso sendo usado com dinheiro público”, diz o advogado Francisco Campis, membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos e estudioso das Consetelações Familiares sob a perspectiva hermenêutica.
Nas jurisprudências em que se encontra o uso da Constelação, aparece um pouco de tudo: casos de violência doméstica em que o acusado é intimado a participar da prática e, quando a recusa, a negativa é citada em sentença para negar sua apelação; argumentações metafísicas em casos de divórcio litigioso, ações de alimentos ou de guarda; “perícias” que têm como base a Constelação Familiar em casos de aposentadoria por invalidez, entre outros.Mesmo nos casos em que a prática, de alguma forma, ajuda a selar acordos para contornar os litígios, ela não deixa de preocupar os advogados. Luiz Kignel, sócio do PLKC Advogados e especializado em mediação, atuou em uma única ação de herança em que as partes não chegavam a acordo e também se recusaram a participar da própria mediação. Uma das partes então propôs a Constelação e, a partir disso, houve acordo. À época, ele não conhecia a prática.
“As pessoas confundem muito Constelação Familiar com mediação, são coisas completamente diferentes, embora caminhem para o mesmo objetivo, que é terminar um conflito sem litígio. A mediação é regulamentada e trabalha, na verdade, com o emocional, o intangível, mas a mediação é o intangível pautável, você discute fatos e eventos que as pessoas conhecem. A Constelação é outra conversa, mexe com o subconsciente, com o passado”, diz. “Tive só esse caso, foi curioso, mas se o Conselho Federal de Psicologia diz que não está abençoado, a gente tem que ter reservas.”Fundamentação metafísica
À boca pequena, há centenas de relatos de mediações e audiências com o uso da Constelação Familiar que mostram desde endosso a visões sexistas em casos de divórcio até situações mais graves, como em casos de violência doméstica em que a própria vítima é culpabilizada. Nesses processos mais delicados, muitas vezes os “constelados”, por conta da exposição de traumas e outras violências, têm medo de falar publicamente sobre suas experiências.
Mestre e doutorando em Direito, Mateus França, que estuda o uso da Constelação Familiar no Poder Judiciário e é signatário da carta enviada ao Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, diz à reportagem que já recebeu contatos de mulheres que atuam em grupos de apoio a vítimas de violência sexual e citaram que a Constelação reforçou traumas e as “revitimizou”.
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“Em outros mecanismos de mediação, você tem uma voz ativa das partes, no sentido de eles mesmos poderem falar de onde vem o conflito. Quando você coloca a Constelação no processo, o que acontece é que eles partem de um pressuposto que não é cientificamente validado, de que existe um campo impalpável, capaz de transferir informações sobre qualquer ser vivo.”Em outro processo, a “teoria” da Constelação Familiar é utilizada como fundamentação jurídica para definir se um pai pode ou não ver sua filha presencialmente.
Também sob segredo, o processo tem como base um divórcio litigioso, que envolve ainda uma criança que passa por tratamentos psiquiátricos.
A mãe, no processo, alega que a criança estava enfrentando crises de ansiedade por conta do contato virtual que mantinha com o pai. Este, por outro lado, alegava que queria ver a filha presencialmente.
“Observa o pesquisador alemão [Hellinger] que é importante para o equilíbrio emocional humano alinharmos a presença da figura paterna à consciência de tudo o que ela representa. Ou seja, deve-se olhar para o pai, permitir-se percebê-lo além de qualquer julgamento que se tenha do homem que está neste papel e se conectar com a força da vida e do masculino que chega até nós por meio dele. Essa consciência é libertadora e traz cada vez mais clareza de quem somos e nosso papel social.”
E prosseguiu: “Assim, com o propósito de oferecer à menor o pleno desenvolvimento como figura humana e social, à luz dos ensinamentos sistêmicos, que atribuem ao pai a responsabilidade pelo nosso movimento na vida e para a vida, deve ser assegurada a convivência com o seu genitor, de forma presencial.” Neste caso, a decisão do magistrado foi contrária ao entendimento do Ministério Público, que se manifestou por manter o regime que vigorava até aquele momento, ou seja, encontros virtuais semanais entre pai e filha. Há ainda uma série de vídeos e outros materiais publicados que mostram, empiricamente, a aplicação da Constelação Familiar no âmbito do Judiciário. , captadas pela Ordem dos Advogados do Brasil, subseção Minas Gerais, mostra o advogado Frederico Ciongoli, “pioneiro” da técnica no Brasil, exibindo uma performance do que seria, hipoteticamente, a Constelação em meio a um processo que envolve menor infrator. Aos “atores” que fazem parte da Constelação, ou seja, interpretam a suposta estrutura familiar, o advogado diz: “Lembrando que as pessoas que vão representar…ela entra no vazio. Pronto. Vai seguir os impulsos, vão começar a vir os impulsos.” “A gente vai observar esses movimentos. Então vocês deixem se capturar por esses movimentos. Então entrem no vazio, é lento um pouquinho, a gente tem que ter um pouco de paciência até os impulsos começarem a surgir”. Depois, ele induz o homem que interpreta o “filho” a dizer: “Querido pai, cometer delitos é uma forma de me aproximar de você, de tentar me aproximar de você.” Ao final dessa parte da performance, Ciongoli diz:“A pessoa ou o menor que comete delito, muitas vezes, o delito é uma forma de procurar o pai excluído. É tudo inconsciente. E você ve que comprova nossos representantes na reação: ‘nossa, eu não gostei de ouvir isso’. Por quê? Está comprovando exatamente isso. É uma forma destrutiva, óbvio, de tentar chegar no pai. O Sami tem várias experiências também na área penal com isso, menor infrator, 95% é pai excluído.”
Blindagem necessária
Seja por meio de resolução do CNJ ou dos próprios tribunais, ou pela via legislativa, os advogados que conversaram com a reportagem são unânimes em defender uma regulamentação da prática ou sua total proibição. Hoje, além dos pormenores já citados que são incompatíveis com o exercício do Direito, há também ausência de padrão, o que implica em práticas desregradas que muitas vezes fundamentam sentenças nas varas de Família e impactam diretamente a vida das partes.
Na Assembleia Legislativa de São Paulo, , assinada por Andréa Werner (PSB), Mônica Seixas (PSOL) e Marina Helou (Rede), que proíbe a prática nas instituições públicas paulistas. A pauta se tornou mais relevante após a revelação, pela Agência Pública, de que os tribunais estaduais brasileiros gastaram ao menos R$ 2,6 milhões com cursos, passagens e outras questões relacionadas a Constelação Familiar.
O valor é subnotificado, tendo em vista que 11 tribunais não responderam sobre suas despesas com a prática. “Enquanto o Conselho Federal de Psicologia não se manifestar, não pode nem entrar em discussão no CNJ. Se o próprio Conselho diz que isso não é uma terapia aceitável, como vamos levar isso pro Judiciário?”, questiona Luiz Kignel. “Não se tem uma aceitação mínima, se o conselho não aceita, você vai aceitar?” Para o advogado, acoplar a Constelação à mediação, que tem uma regulamentação própria, “é uma loucura”. “Tem que passar pela via do Legislativo, tem de ser feita uma discussão com a sociedade civil para normatizar isso. A gente não pode ter simplesmente uma prática que pode gerar várias consequências nocivas. É importante que o CNJ também estude e se debruce e gere no mínimo uma forma de padrão para que isso seja feito ou, de preferência, para que não seja autorizado nas mediações e conciliações”, afirma Francisco Campis. França diz que o melhor caminho, assim como foi feito na psicologia, é proibir a prática no Judiciário. Mesmo com a regulamentação, diz, a prática e suas problemáticas permaneceriam. “O Direito de Família, mesmo em ações em que não há violência contra mulheres ou crianças, é uma parte importante na vida das pessoas. Por isso vejo que o melhor é se limitar, e restringir esse uso no Judiciário ao máximo.”Clique aqui para ler a carta enviada ao Ministério dos Direitos Humanos
Clique aqui para ler a nota técnica do Conselho Federal de Psicologia
Processo 0031351-18.2015.8.17.0001
Processo 0500121-44.2019.8.05.0113
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